
“Deste marco, o Momento, um longo e eterno caminho leva ao PASSADO:
Atrás de nós se encerra uma eternidade!
Não devem, todos os que podem andar, ter caminhado nesta via antes?
Não deve, tudo que pode acontecer já acontecido e feito, passado por ali antes?
E se tudo já esteve lá antes?”
Friedrich Nietzsche, 1844-1900
I
O tempo de mais um dia do plano Terrestre se esgota, e, assim como outros Etéreos, ainda não sinto a Lapis Philosophorum. De lá, os ecos na energia apenas se repetem, dia após dia… alegrias e dissabores entre o nascer e o perecer… e a Pedra, com todo o poder que encerra, não produz perturbação alguma nas linhas de força que regem as vidas humanas. Será que realmente existe? Será que não estamos todos perseguindo um sonho, de alguém que não está lá embaixo, entre os que vivem, há séculos? Aliás, onde esse alquimista estaria, se não está no plano Etéreo, nem em penitência no Limbo? O Guardião saberia de seu paradeiro, mesmo se a alma já estivesse obliterada. Talvez tenha se refugiado no plano Onírico? Não sabemos. Mais estranha ainda é essa situação em que nós, às beiras da onisciência, estejamos todos cegos e sem direção – restando apenas vagar no Éter, essa vastidão acima da esfera da Terra e de onde os Superiores nos deitam seus olhos, pela espera de algum sinal da Lapis.
São décadas pairando por estas alturas – tal como o fruto de uma Sublimatio – e as emoções humanas em mim se tornam cada vez mais distantes, difusas… começam a se esvair para além dos limites da consciência, quase a ponto de se mesclarem ao Éter. Tornam-se insípidos pela passagem do tempo os dilemas humanos, e não vejo sentido em dobrar minha energia para manter uma imagem à sua semelhança… não mais. Resta apenas a consciência do homem que fui, de lembranças que tropeçam em sua pequenez frente aos tantos outros planos que existem e se desdobram para além da matéria quando a deixamos… lembranças envoltas pelas luzes das estrelas a observar as luzes das cidades. “O que está em cima é como o que está embaixo…”.
Por esse lento desvanecer, questiono se estaria minha missão como Ascensionado cumprida ante aos desejos dos Superiores… A Pedra, finalmente, estaria segura sob a Vossa guarda? E que talvez não seja eu digno, mesmo como um Ascensionado, de receber a nova?
E assim, absorto nas mais diversas conjecturas, eu, que sublimei para não mais coagular, me sentindo prestes a dissolver na vastidão do Éter para então integrar o Caos, revisito uma última vez as lembranças daqueles que amo, para que ao menos uma fração desse amor reverbere na matéria em desordem, de tantas outras fontes de Prima Materia tentando se re-unir, na esperança de consumar cada Opus Alchymicum que lhes são reservadas. Mas, as imagens das crianças correndo pelas areias claras naquele entardecer dourado, que tingia as espumas de ondas calmas, foram interrompidas e a visão antes iluminada se fechou em breu outra vez. Os sons vindos do plano Terrestre emudeceram, e por uns poucos instantes acreditei que aquela era a passagem para o não-existir no Caos, quando, de súbito, fui arrancado do Éter para ser lançado ao plano Terrestre, depois do choque com uma onda abrupta de energia que certamente varreu os planos e talvez até mesmo o Tártaro. Não sei dizer se foi a Pedra a responsável por tamanha violência contra as linhas de força que mantém os planos atados, mas deve haver um bom motivo para estar de volta aqui embaixo, como o Chamado a que respondi – há muito mais tempo – para me tornar um Ascensionado.
Caí em uma região pouco habitada, de estradas sinuosas que cortavam a vegetação de planícies e morros rasos. Sons de atividade humana chegavam até mim enfraquecidos, um vozerio confuso em meio ao compasso de algum tipo de música, inédita ao que meus ouvidos já captaram quando ainda os tinha. Atraído pela fonte daquele ruído, encontro ao fim do caminho uma edificação acastelada que servira de forte a uma pequena comunidade e seu senhorio, há muito. Agora adaptada para entretenimento, luzes de cores vivas escapavam de seu interior pelas janelas pequenas, tornando, ao redor, reluzentes as árvores que antes mesclavam-se ao breu da noite.
A razão de ser convocado com tanta urgência, logo ao chegar ali, se mostrou evidente. Houve sacrifício. Entorpecidas, as pessoas divertiam-se indo e vindo de dentro do lugar, alheias à presença dos seres perversos que estiveram entre elas e à batalha ali travada minutos atrás. As entidades – sim, várias delas passaram pelo lugar – deixaram seus vestígios como porções de uma bruma cinzenta, espalhadas pelo exterior do castelo e que se dissipavam lentamente ao sabor de uma brisa fraca. É preciso ser portador de dons muito especiais para perceber energias densas como essa, bem como uma outra, de aroma leve e adocicado que ainda pairava no ar. Tristemente, não tive dúvidas de que este bálsamo prestes a se esvair é o que restou do Protetor que ali esteve, e que abdicou da própria existência transmutando sua essência em energia celeste, pela defesa de alguém. E esse foi o impacto que alcançou a mim nas alturas do Éter, fazendo de minha descida um lamento em nome de um dos nossos, que jamais voltarei a ver.
Não havia ali mais o que se combater e então poderia voltar à busca da Lapis, quando, pouco antes de mais essa subida, vejo o Guardião Virgílio saindo do castelo com um homem vazio de sentimentos, quase morto na verdade. Olhos sem viço, o sangue parecia lhe faltar na pele, que aliás, exalava algo semelhante – porém bem mais nocivo – à bruma escura que já havia se esgotado dos arredores. Com dificuldade o homem alcançou seu veículo e deixou o lugar, mas graças às energias e à sugestão subconsciente que recebia do Guardião. Este ainda se voltou a mim com um olhar austero – e também de uma profundidade hipnotizante – ordenando a minha entrada no local sem proferir palavra alguma.
Ainda sem uma imagem corpórea, sigo então por um corredor largo que, ao seu fim, abria-se em um amplo salão repleto de pessoas dançando em êxtase, e das mesas ao redor outras tantas apenas acompanhavam o movimento, todas elas preenchidas por felicidades artificiais. Nada ali era um alerta para me levar a agir, mas havia algo estranho àquele turbilhão de sons. Vozes exaltadas. E abafadas, como se vindas de câmaras secretas para além do salão. Em meio a todo o alvoroço festivo era difícil identificar uma direção a seguir, não restando opção a não ser atravessar aquelas grossas paredes de pedra. Avançava devagar, os sons da música ficavam para trás, e as vozes ganhavam força. Angústia, o que transmitiam. E poucos metros à frente eu encontraria o cenário para tanta aflição.
Aquele era um cômodo isolado, onde, em tempos passados, aqueles que desrespeitavam as ordens do senhorio eram aprisionados. Ecos dos sofrimentos dessa clausura ainda ressoavam pelas paredes renovadas. Agora, as muitas peças de mobília para toucador silenciavam aquela energia com seus espelhos e lâmpadas, ali dispostos para que as garotas pudessem se preparar para algum tipo de apresentação artística. Sim, as garotas. Eu via duas delas desacordadas pelo chão, atadas à vida por um mínimo de energia vital, enquanto uma outra, mesmo enfraquecida, tentava reanimá-las.
— Ei, acordem! Lily! Rose! Acordem, por favor, acordem! — As lágrimas borravam a maquiagem pesada, e ela, pouco mais velha que as demais, tentava conter o desespero ao levar as mãos ao rosto, revelando, entre outras flores, um grande crisântemo azul estampado no braço esquerdo, até então encoberto pelos seus volumosos cachos acobreados.
— Anne? O que aconteceu, como voltei ao camarim? — Rose tentava se erguer, trêmula, afastando os longos cabelos castanhos para pressionar as têmporas, enquanto a outra acordava lentamente, depois de receberem um pouco de minha energia. Descobrir o que aconteceu ali não era prioridade, não no momento, pelo risco que todas corriam de ter suas jovens vidas abreviadas, e Anne as abraçava, confusa entre sentimentos de alívio e alegria.
— Vocês vieram desesperadas para o bar dizendo que aquele quarentão estava morto, e logo depois desmaiaram bem na minha frente. Rose, ele drogou vocês? Ofereceu qualquer coisa, uma bebida que seja?
— Não falamos com ele, Anne. Já estava sem reação quando o encontramos.
— Isso não faz sentido… eu também me senti mal, mas lembro bem de Lily acompanhando o cara, e você por perto, de “guarda”…, para pegar os pedidos, acho. Vocês sumiram da minha vista por um tempo, e apareceram no bar depois, naquela angústia. Os seguranças me ajudaram a trazer vocês até aqui.
Incontáveis suspeitas as faziam divagar sobre o acontecido, e, sem forças ainda, preparavam-se para voltar aos seus aposentos, ali mesmo no castelo. Aquele era um reduto para atos ilícitos, mas, ainda assim, o que as acometeu nada tinha a ver com desejos de uma psique perturbada. Resquícios da mesma energia nefasta espalhada pelo lado de fora exalava de cada uma delas, o que me leva a crer que abrigaram, em seus corpos, aqueles que levaram o Protetor à destruição, assim como também o fizeram com o homem na companhia do Guardião, de certa forma. Soube por Virgílio do que são feitas essas criaturas, quando fui convocado para a busca da Lapis Philosophorum. Incrivelmente são almas humanas, mas corrompidas no nível de não mais merecer um corpo – pelo nascimento – para permanecer no plano Terrestre. Nunca buscaram uma redenção das incontáveis atrocidades que cometeram. Vida após vida.
Contrariando as leis que regem as idas e vindas das almas pelos planos Terrestre e Etéreo, se esquivam da obliteração tomando qualquer porção de matéria viva, ou vagando imateriais até sentirem o Julgamento a lhes morder os calcanhares para a derradeira punição, quando então infiltram-se no próximo “abrigo”. Por isso os chamamos de Spectrum. E conseguem essas manobras através dos “olhos” de um poder maior, sobre-humano, que se esgueira pelo mundo por eras, deixando atrás de si rastros de uma iniquidade incomparável, mesmo às auras dos mais hediondos seres que já enfrentei. Agravado pelo peso das derrotas no enfrentamento dessas forças em seu semblante, esse foi o relato do Guardião Virgílio sobre os Olhares. Ele ainda falou do retorno de alquimistas a esta época para concluir – após séculos de suas mortes – uma Opus Alchymicum, cujo fruto, e somente esse fruto, pode banir essa ameaça e reaver o equilíbrio do plano Terrestre. Sem dar maiores detalhes senão os atributos da Lapis Philosophorum e de seu criador Ele se foi, e alguns anos se passaram até encontrá-lo mais uma vez, resgatando desse castelo aquele homem sem alma.
II
As garotas sequer imaginam quão afortunadas são. Abandonadas, mesmo às beiras do fim, fizeram daquele período inconsciente o preparo para um segundo nascimento. Os Spectrum as consumiriam até o esgotamento, quando, por fim, cairiam sem vida. Deixá-las para trás sugere que algo – ou alguém – poderia apoiá-los no encontro com outros Etéreos, atraídos pelo sacrifício do Protetor, assim como fui. Mesmo o homem salvo pelo Guardião, impregnado com aquela emanação carregada de maldade, normalmente teria sua vida ceifada, mas estranhamente o deixaram para viver. Difícil saber que passos aqueles seres percorreram com seus corpos e qual a real intenção dessa mera “visita” ao lugar, coisa que talvez o próprio Virgílio possa me esclarecer algum dia. Por ora vou me ater à Sua ordem quanto ao cuidar dos ferimentos espirituais nas garotas, que possam ter causado… e, quem sabe, revisitar alguns dos lugares por onde passei em minha última existência nesse plano.
Estive ao lado de cada uma delas, nos dois meses que se seguiram. Nelas haviam muito mais traumas do que os causados pelos Olhares para reparar, e me entristeço ao ver que, mesmo nesses tempos modernos, as mulheres ainda sejam alvos das mais diversas injúrias, marcadas por uma aparente fragilidade. Minhas porções de energia as faziam inteiras outra vez, juntando retalhos e cacos de vidas que chegaram até aqui por caminhos espinhosos, e que mais uma vez se abririam em outros caminhos, para cada uma delas.
Novos começos pedem a ceifa de velhos hábitos. Dia após dia, a casa de shows tornava-se cada vez mais deserta, como já esperado… inevitável, aos lugares “manchados” pelos Spectrum. Mesmo que não possuam os dons do espírito, algumas pessoas percebem a perversidade por onde ela passa. Seja dos Olhares, de seus próprios pares ou de outras entidades. Naturalmente então evitam retornar a esses lugares condenados, movidos por um instinto de autopreservação. O encerramento das atividades no castelo foi anunciado há uns dez dias, e as garotas preparavam-se para a partida, reunindo-se em uma pequena comemoração para marcar a despedida, no saguão. Aquele lugar, que antes abarrotado mal tinha espaço para um ser etéreo como eu me deslocar, agora vazio, triplicava as risadas que ressoavam entre nós, e eu podia dar minha missão ali como concluída. Decidi que voltaria ao Éter e à busca pela Pedra também nessa ocasião. Aquela alegria acalmava minha mente, e finalmente eu podia me desprender do peso dos Olhares e estar ali como um simples espectador, sem combates para travar ou nenhum resgate ao qual partir às pressas.
— Lily? Que foto é essa? — Ela rapidamente escondia o papel dentro da jaqueta, por onde desciam pequenas e longas tranças que emolduravam um rosto miúdo de traços finos, cujo brilho dos olhos verdes se destacava como gemas preciosas cravejadas em uma linda peça esculpida no bronze. Rose ainda insistia, desajeitada com os cabelos da franja entrando pelos olhos, ao tentar enfiar as mãos pela roupa de Lily, que ria em meio à preocupação de ter seu pequeno segredo revelado.
— Vai dar para esconder bofe, Lily? Depois de tanto tempo dividindo o teto com a gente? — Rose abraçava a moça pelos ombros, que, envergonhada, desconversa para deixar de ser o centro das atenções.
— Rose, não vamos matar ninguém de vergonha no nosso último dia juntas, por favor. O gosto da liberdade, desse caminho aberto, é o que importa agora. Bom, pelo menos o meu caminho é sempre uma estrada à frente e vazia de paisagem, não tenho nada nem ninguém para voltar. Não que alguém fosse querer alguém como eu por perto, claro. Mas e vocês? Quais os planos daqui pra frente?
— Acho que nenhuma de nós é benquista em algum lugar, Anne… não depois de tanta dor de cabeça que arranjamos para os outros. Mas… acho que hoje consigo ver a minha mãe, sem sentir tanta vergonha, tanta culpa.
— Ela está no St. Helens, Rose? Lembro de ouvir você dizer algo assim quando encomendou a lápide. — Rose já tinha desistido de tomar a foto dos bolsos de Lily, para responder com um olhar entristecido.
— Lá mesmo. Acho que é a única coisa que consigo pensar em fazer, já que não tive coragem de me despedir dela, não até estar sóbria… E você, Lily? Quando vai ter coragem para encarar a sua irmã?
— Não sei… ela ainda deve esconder o paradeiro da ex-vigarista da família… o que foram umas míseras rodadas de pôquer “arrumadas”, gente? Se o investigador não tivesse descoberto esse meu “hobby”, ela ainda estaria me convidando para os aniversários, com direito a xícaras de Earl Grey e tortas de frutas! — Lily encenava o chá junto a outras senhoras imaginárias, fazendo todas rirem do deboche.
Então, antes que o encontro acabasse as deixei, para manter na memória aquela cena, livre de pesares e repleta de novos horizontes a se alcançar. A proximidade da costa me atraiu para revisitar o vilarejo onde vivi neste plano pela última vez. Voltavam à minha consciência as memórias da casa à beira-mar, mesmo que desta não houvesse mais do que poucos escombros espalhados pela areia. Foram tempos de alegria e paz, dos filhos trôpegos de sono vindo de encontro à mesa coberta de pães, queijos, e leite morno para o desjejum. Dos banhos de mar à tarde, de trazer os pequenos daquelas águas claras à varanda, onde ela nos esperava. Houve alegria e paz. Até o dia que deixei este plano.
III
Era um dia de mar revolto, de ondas imensas que invadiam o cais e encharcavam os homens, dificultando o trabalho. As atividades foram suspensas até segunda ordem, pelo risco de danos à carga. Preocupado com a subida da maré, em fúria como estava, voltei o mais rápido que pude, para encontrar a porta de entrada escancarada dando de encontro com o batente sem cessar. Subi às pressas, para encontrar um rastro de sangue pelo chão. E de lá dos fundos, choro de criança. O aperto no peito não continha a angústia, e o corredor parecia interminável para chegar à origem daquele som pavoroso. Acuados em um canto da cozinha, ela sangrava por um dos braços, tentando proteger nossos filhos do homem com o punhal em uma das mãos. Meus olhos foram atraídos pela foice pequena que, justo naquele dia, não foi deixada no jardim, para reluzir – como um convite – sobre o balcão de madeira escura. Em uma fração de segundo o agressor sucumbiu à minha frente, com um só golpe… mas não antes de também cravar sua lâmina gasta em meu ventre.
Deixei de responder o Chamado ao Éter inúmeras vezes, para ficar junto a eles, como se pudesse protegê-los… mas… minha presença causava sofrimento. Os sorrisos se apagaram e não seguiam adiante com suas vidas, cativos na memória daquele dia trágico. Era apenas uma alma humana, não podia lhes transmitir energia como faço agora. Na verdade eu os consumia e vê-los definhar também me afligia, de forma que começaram a adoecer e eu, a me desesperar. Enfraquecidos, os pequenos rodeavam a cama enquanto a mãe ali esmorecia em febre. Foi quando o Guardião se apresentou, ao ouvir minha súplica. Ofereci-lhe minha alma para que os salvasse, mas ele não a tomou. Disse poderia salvar muito mais vidas se aceitasse um último Chamado, e assim o fiz, me tornando um Ascensionado.
Todos eles viveram, sublimaram para voltar ao Éter e coagularam para trilhar novos caminhos em seus sucessores. Solve et Coagula… Vez ou outra os acompanho, compartilhando do meu amor e também de minhas energias, como fiz com as garotas. A paz preenchia minha essência mais uma vez, depois de um pôr do sol e amanhecer separados por uma belíssima noite estrelada sobre águas calmas. Me preparava então para voltar à busca da Lapis, quando aquele sentimento sufocante do coração apertado no peito voltou à minha consciência, depois de tanto tempo. Tinha agora laços com as garotas, e eu sabia que era uma delas a sofrer. Assim como o corredor que parecia sem fim, interminável era o caminho rumo à origem daquela dor. O tormento se alastrava tomando cada porção do ser ao avançar naquela trilha, tão aterradora quanto à lembrança do rastro de sangue derramado. Esperava encontrar uma delas acuada por alguma ameaça para combater, quando, na verdade, já não havia muito que eu pudesse fazer. Que eu pudesse fazer por… Anne.
Ela, agora quase sem vida, também passou a noite a observar as estrelas, em um parque de campos verdes e árvores frondosas. Sozinha. Não havia sinais de luta, ou de desarranjo em seus pertences. O corpo não foi ferido. Apenas sua energia vital havia sido drenada. Mesmo sem esperanças doei quase toda a minha energia a ela, mas eu já a via caminhar em direção às primeiras luzes do dia, sem olhar para trás, para aquele corpo vazio, mas belamente estampado com flores ainda muito vivas. Fiquei junto a esse jardim enquanto a energia se dissipava, revisitando minha estada junto a ela, tentando encontrar uma falha minha quanto ao “tratamento” das garotas, quando, interrompendo minha reflexão, antes que o sol despontasse de vez no horizonte, senti uma aproximação rápida de uma força nefasta. Justo agora, exaurido de energias e incapaz de juntar o suficiente para enfrentar aquele que eu já havia sentido no dia da minha descida, a exalar das garotas.
Aquele vulto, invisível aos olhos humanos, então ergueu-se à minha frente. Fraco como estava não conseguiria mais do que fugir dali, quando, antes que o fizesse, o Spectrum pôs-se a “falar”. Sem uma voz, suas mensagens ressoavam em minha consciência, e eu estava paralisado. Não restou alternativa a não ser ouvi-lo, e talvez me oferecer em sacrifício como o Protetor no castelo.
— Precisamos deixá-las por ordem da bruxa, depois de fechar as memórias daquele homem. Mas não as esquecemos… elas já estão marcadas. Basta seguir a sombra que deixamos em cada uma delas. O seu fracasso é um deleite, para saborear com calma. Assim como elas. Você vai ficar, para ver.
Ele então nos deixou e um sinal surgiu no pescoço de Anne, como uma cicatriz feita à ferro em brasa, comum às marcas que os escravizados carregavam no passado. Não ficaria surpreso se esse Spectrum fosse antes um desses algozes que impingiam tamanha violência contra outros seres humanos. Suas palavras, “estão marcadas”, já deixa evidente esse possível passado. Mesmo que fossem conjecturas, somadas a esses dizeres e à perda de Anne, sentimentos já há muito abandonados emergiam em mim outra vez, como a cólera e a culpa, tão intensos como quando me tornei um assassino, mesmo em defesa de minha família.
IV
Não podia me envolver em questões que embotam o raciocínio enquanto as vidas de Rose e Lily dependiam de uma corrida contra o tempo. Voltei a mim, e assim como na busca pela Pedra, varria as linhas de força do plano Terrestre, agora em busca de manifestações daquele Spectrum, para alcançá-lo antes de que uma das garotas fosse ferida, ou pior, ferida de morte. Trabalho árduo. Se nem a Pedra, que emana – caso exista – um poder absurdo, conseguimos captar na vastidão de sinais vindos do plano Terrestre, localizar o Spectrum tange o impossível. Preciso de mais que ondulações nas energias do plano. E assim, me volto à memória com as três, quando felizes em seu encontro de despedida, e inocentes quanto à ameaça que ainda as espreitava.
Apesar de sermos etéreos, ainda não podemos nos desdobrar e estar em vários locais ao mesmo tempo. Dentre as duas, era preciso fazer uma aposta… qual delas buscar em primeiro lugar. Uma decisão espinhosa. Mas, me parecia ser Rose a que também estaria sozinha, uma vez que sua prioridade era a reparação junto a alguém que já deixou este plano. Independente dos motivos que tenha tido para o distanciamento, a honra à memória aos que já se foram já a redime, e tem mais valor do que palavras vazias que muitos trocam entre si nos dias de hoje. A vejo naquela cena outra vez, importunando Lily por conta de uma foto… quando Anne gentilmente fornece a pista de que precisava.
O “deslocamento” até os arredores do St. Helens tomaria certo tempo, mas nada relacionado à distância geográfica que nos separava. As viagens que fazemos pelo plano Etéreo e Terrestre podem tomar bem menos tempo, mas ainda assim não são “instantâneas”. Tentava me manter concentrado na busca, agora já próximo àquele destino, quando a sensação de aperto no peito invadiu a consciência outra vez. Eu já estava às portas de um mausoléu discreto dedicado à família de Rose, quando a vi caída em frente ao espaço reservado à sua mãe. Dessa vez, a vida já tinha se esvaído da moça, eu as via, mãe e filha, abraçarem-se felizes para então atender ao Chamado. Ela acreditou nesse reencontro e ali esperou por Rose. No corpo da jovem, o mesmo símbolo gravado em Anne agora também o manchava.
V
Agora eram duas as perdas que se somavam ao meu pesar. Os sentimentos aos quais minha consciência se atinha eram tóxicos, e me esforçava para voltar à busca, agora de Lily. Tímida, dificilmente falava com as outras garotas sobre a sua vida pregressa e isso dificultava as coisas. Como antes nenhum sinal do Spectrum era percebido, e esse silêncio nos ecos da energia, já há dias depois da passagem de Rose, atingia meus pensamentos como as ondas enfurecidas naquele dia de maré alta. Assim como na procura pela Pedra, me sentia impotente e sem direção. Voltava não apenas à despedida das garotas, mas a todos os momentos junto a elas na tentativa de conseguir alguma informação, sem sucesso algum. Rever Anne e Rose por tantas vezes naquelas memórias, tão felizes em sua despedida, me entristecia. Elas também se despediam de suas vidas, como se soubessem que dali a poucos passos já estariam caminhando por outros planos, em novas jornadas. A insistência de Rose ao revirar as roupas de Lily, tantas vezes reprisadas, me despertou a curiosidade para desacelerar aquela cena e também saber o que tanto lhe valia naquela foto para esconder das demais. Era evidente o afeto em seu olhar, e esboçava um sorriso discreto naquela fração de segundo avistando o pedaço de papel. Então pude ver, antes do atropelo de Rose em suas emoções, a mesma Lily um pouco mais jovem, em um extremo de felicidade com um pequenino em seus braços, também sorridente. Por volta dos quatro anos naquela época, possuía os mesmos olhos de brilhantes esmeraldas que se destacavam no rosto miúdo de traços delicados. A suposição se tornou uma certeza ao revisitar outras memórias de Lily, quando, por descuido, revelou uma grande cicatriz horizontal no baixo ventre. Pelo tempo da foto, cerca de oito anos atrás ela tornara-se mãe. E em algum momento se separaram. Ao fundo naquela imagem desgastada, os portões do parque apareciam abertos e adornados com o seu nome, “Victoria”. Um nome auspicioso para uma situação tão adversa, de forma que não hesitei em me “deslocar” para lá.
Havia um cinturão de pequenas casas ao redor do parque, umas coladas às outras, e que faziam frente a um largo canteiro gramado circundado por árvores agora sem folhagens.
Do alto avistei Lily, sozinha e cabisbaixa em um dos bancos do gramado, trazendo um embrulho colorido nas mãos. Depois de quatro ou cinco anos, certamente estaria hesitante em rever o filho, fazendo daquele momento um respiro para tomar coragem e se aproximar. O alívio por encontrá-la antes do Spectrum, porém, se tornou desespero quando ela, que parecia se preparar para o reencontro, tombou para o lado deixando o presente escapar-lhe das mãos. Assim como Anne, estava atada à vida por um fio prestes a se romper, que eu tentava restabelecer com as minhas energias o mais rápido que podia. Mais uma vez, me perguntava porque o Spectrum a deixara viva. Para “saborear” a minha agonia, talvez? Eu não o sentia ali e isso me impregnava de um mau presságio, enquanto Lily não reagia. Foi quando ouvi, não muito longe de nós… choro de criança. E a repentina presença do Spectrum, revelada e fortalecida pela vitalidade das garotas, feria minha consciência como um golpe doloroso. Era um tropeço no mesmo caminho já vivido, de rastros de sangue transmutados em som de lágrimas e de vidas jovens esmorecendo à minha frente, causando uma paralisia na qual eu não podia me aprisionar. Reditus Æternus. Então pedi à moça que me perdoasse por deixá-la, sabendo que ela também se sacrificaria pela criança se tivesse forças para tanto.
A cena se repetia. Passos pesados frente a um caminho interminável. E mais uma vez, vi uma criança acuada e aterrorizada – pois sim, ela podia ver o Spectrum tentando alcançá-la e de certa forma percebia suas intenções. Sem se voltar à minha presença, o vulto pôs-se a transmitir suas mensagens mentais a mim, imbuídas do sarcasmo típico daqueles que estão certos de sua vitória.
— Disse que você ficaria para ver. Você só se engana ao pensar que nos veria apenas consumindo as garotas. Veja agora do que realmente somos capazes, Ascensionado.
Pequenos olhos surgiram pelas ranhuras do muro atrás do menino, e deles senti aquela mesma energia, tão nociva quanto a do próprio Spectrum. A mesma que emanava do homem resgatado por Virgílio, no dia da minha descida. Era a “bruxa” por trás dos Olhares prestes a fazer a “troca” – assim como fez para que os Spectrum tomassem cada uma das garotas.
As energias que me restavam eram poucas, mas, ainda assim tentava golpeá-los, um esforço inútil. Foi então que veio à mente o motivo do meu chamado ao plano Terrestre. Um sacrifício. Seria uma chance para o pequeno, uma vez que até Lily e sua irmã já estivessem sem vida. Trazer os versos para a obliteração à tona na consciência trazia uma sensação de calor, e aquele cenário logo se apagou da minha visão. Prossegui entoando os versos na esperança de salvar o menino, quando, por fim, senti minha energia irrompendo intensamente, varrendo todo o lugar.
VI
— Ascensionado, desperte.
Aquela voz era familiar. A luz do sol mais uma vez chegava à minha consciência disforme, quando pensei que não mais a veria. Lily abraçava o pequeno com todas as suas forças, enquanto sua irmã os observava à distância. Não compreendia. Se aquele foi meu fim, como podia vê-los, e ainda salvos? E a dor pela perda de Anne e Rose que ainda permanecem em meu ser, se busquei também essa redenção pelo sacrifício?
— Faça dessa dor sua força para proteger mais vidas. — Virgílio surge à minha frente, o Guardião que salvou essa família e a mim, agora pela segunda vez. O saudei com uma reverência em agradecimento, e o mesmo continuou a falar enquanto observava aquele encontro, há tanto esperado.
— A Opus será resgatada pelos alquimistas que estão adormecidos na profundeza da consciência de duas vidas separadas. Você sabe agora do que os Olhares são capazes para permanecer na Terra. Muitos estarão em risco, e hoje sei que você tem a força para protegê-los. Seja, de agora em diante, um Protetor.
Uma força descomunal tomou meu ser, e Virgílio então se foi. Me sentia honrado em ter a confiança do Guardião para me convocar à Opus Alchymicum como um Protetor, mas nada seria capaz de abrandar o pesar pelas garotas. Precisava voltar ao Éter, para a busca da Pedra, mas não antes de me despedir de Anne.
Assim como Rose, Anne também tinha sua última morada no St. Helens.
Parcas eram minhas ilusões quanto à redenção da culpa a me torturar o espírito, de pensar que ela, sozinha em seus últimos momentos nesse plano, possa ter encarado o horror de estar face a face com um Spectrum, enquanto me perdia em lembranças longínquas. Ela, em seus primeiros passos rumo ao Éter, tão desapegada dos caminhos abertos de que falava, parecia ter ares de mágoa, talvez erguida sob uma vida inteira de solitude. Quis então fazer-lhe dessa despedida um sinal, estando ela onde estiver, de que ao menos no breve tempo desde a minha descida havia alguém zelando pelos seus passos, curando suas feridas, velando seu sono. Não tinha garantia alguma de que essa mensagem fosse chegar até seu coração, e, entristecido, já me aproximava de onde descansava aquele jardim, quando, ela própria, resplandecente, surgiu em minha visão dissipando todo o pesar que carregava desde a sua passagem. Agora sei do resplendor da Anima Candida quando emerge da matéria já entregue à morte, mesmo quando a aflição pelas trevas de uma Mortificatio ainda nos toma o ser.
Sua aura exalava um perfume tão envolvente quanto o deixado pelo Protetor aos arredores daquele castelo, onde a conheci. Estou certo de que eram as flores, todas trazidas para sua imagem imaterial, que inundavam os ares com essa essência sublime. As pétalas, antes estáticas na pele alva, agora moviam-se ao ritmo da brisa que fazia as copas das árvores suspirarem perante aquele encontro. Sim, um encontro. E não, não estávamos sós.
Os lábios tintos em carmesin formavam um sorriso terno ao jovem frente à lápide. Seus olhos, distantes, revelados quando os sopros da brisa afastavam os longos cabelos escuros da fronte, certamente procuravam por ela em algum lugar. Ele trazia consigo um ramalhete de flores tão vivas quanto aquelas que agora lhe estampavam a alma, e, ainda sorridente, ela me acenou um adeus, para então acompanhá-lo em novos caminhos, não tão solitários ou vazios de paisagem como dissera às outras garotas.
Nunca estamos sós, afinal. Sempre podemos trazê-los conosco para a jornada, fazendo de seus sorrisos, dores ou perdas, tesouros para não se apagar da memória, por mais batalhas a se lutar ou tempos a se vagar pelo Éter. E assim, finalmente, tomo para mim o nome e a imagem de Anne, com seus grandes e reluzentes cachos acobreados que se deitam sobre um belo jardim de crisântemos, rosas e… lírios.

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Data do Registro: 27/02/2025 17:15:52
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IMAGEM: Alana Lopps, “Crisântemo” (2025). @alana_lopps
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