
“Compreendei, Filhos da Sabedoria, declara a Pedra:
‘Protegei-me e eu vos protegerei:
Dai-me o que é meu para que eu vos possa ajudar…’ ”
Mary Anne Atwood, 1817-1910
I
As imagens das mandalas seguiam, uma após a outra, demoradamente pela tela do notebook. Aquarelas trêmulas de cores que buscavam alguma harmonia sem sucesso, desvelando em suas linhas o descompasso da psique de seu compositor. Um universo caótico de sentimentos e pensamentos condensados em um mesmo formato, que se repetia pelas dezenas de anexos daquele e-mail, de raios fechados em um círculo irregular, que convergiam a um centro sólido e sempre mais brilhante. A mensagem junto àqueles sóis de pinceladas desarranjadas era curta:
Precisamos partir para uma abordagem pautada na psicanálise, como apoio para o diagnóstico. Venha nos visitar para conhecê-lo, talvez ele se abra com a ajuda de um rosto mais novo. E talvez fazer dessa visita uma desculpa para rever um “velho” amigo.
Atenciosamente,
Dr. Augusto Bryan de Assis
Psiquiatria – Clínica Alstroemeria
Pensativa, Elise ajeitava as pontas do cabelo chanel para trás das orelhas, a um passo de perder-se nas muitas conjecturas sobre que facetas de si mesmo o autor das mandalas mantém enclausuradas e isoladas do resto do mundo. “Fragmentos…” – dizia ela, como um sussurro – enquanto passava rapidamente pelos últimos e-mails do dia. Puxou da estante um livro de capa vermelha, escrito por um certo “astuto alienista suíço”, como diz um de nossos Ascensionados mais queridos. Repleto de imagens semelhantes às mandalas daquele e-mail, todas eram de pacientes que trilhavam o caminho para fazer dos “fragmentos” restantes de suas vidas algo inteiro outra vez. Unificado. A leitura estendia-se à madrugada, e ainda assim não havia sinal algum de cansaço que pudesse apartá-la dos livros. A razão para deixá-los de lado foi o convite daquele e-mail, de certa forma “marcado” para dali a poucas horas. Ela ainda demorou-se ali por mais alguns minutos a encarar um pequeno frasco âmbar, retirado da gaveta da escrivaninha sem muito ânimo, para então tomar um de seus comprimidos com água e dirigir-se a outra noite de um sono artificial, sem sonhos.
II
Logo pela manhã Elise entrava pelas portas da clínica Alstroemeria, um local destacado pelo bom gosto tanto na arquitetura quanto na decoração minimalista, de paredes claras repletas de quadros que revelavam o espírito de flores por radiografia. Seu anfitrião, o autor da mensagem carregada com as enigmáticas mandalas, surgiria naquele saguão oval poucos minutos depois de anunciada a visita.
— Professor! Quanto tempo que não nos vemos! Realmente não pude me esquivar dessa “desculpa” para visitá-lo.
— Deixe esse “professor” de lado, Elise. — Ele a segurava pelos dois ombros, como um abraço à distância — nós dois sabemos que você tem muito mais a nos ensinar por aqui. Venha, vamos à biblioteca. Temos uma cafeteira excelente por lá, creio que uma xícara apenas não vai ser suficiente pelo tempo que precisaremos para pôr os assuntos em dia!
Eles seguiram por alguns corredores enquanto percorriam os assuntos mais amenos: os estudos, carreira, família, entre outros. Ela encurtava aquela etapa da visita como podia, pois o interesse pelo paciente autor das mandalas era maior. No entanto, enquanto se serviam do café, cujo aroma inundava o ambiente circundado pelas altas prateleiras lotadas de livros, aquele senhor franzino de cabelos bem grisalhos, quase que escondido atrás das lentes grossas dos óculos, ainda a segurou por mais tempo longe do motivo pelo qual seus pensamentos fervilhavam.
— Ainda precisando da muleta para dormir, Elise? — Ele dirigia-se a uma mesa mais reservada, puxando uma cadeira para que ela tomasse o lugar.
— Sim professor, sem os comprimidos eu passo a noite toda em claro, e os músculos se esbravejam comigo. Às vezes essa insônia até que me é útil, quando preciso estudar um pouco ou quando recebo um caso novo para analisar, assim como o que o senhor mandou. — Ela implorava, com aqueles grandes olhos castanho-avermelhados, para que ele retomasse o assunto daquele e-mail, mas, ele dava mostras de que tinha um outro assunto, um velho assunto, que também fazia suas ideias chacoalharem em alvoroço.
— Acredito que o gatilho para sua insônia já deve estar superado, Elise. Ela dificilmente vai retornar aos seus sonhos, depois de tanto tempo… E mesmo se voltar, eu estarei aqui, como estive quando meus cabelos ainda não eram tão brancos, e você não era tão alta! Você sabe que temos outras opções para que você sonhe, além de apenas dormir.
— Me sinto bem, Bryan. Não vamos mexer com o que está dando certo, por favor. Não sinto falta dos meus sonhos, aqueles que os pacientes me trazem são bem mais interessantes… o autor das mandalas… ele já falou alguma coisa sobre o que sonha?
— Sim, sim, o Gabriel. Sabia que você ficaria angustiada por mais detalhes, sei como esses enigmas te fascinam. E que você estaria aqui logo depois de ler a mensagem, por isso mandei tarde da noite. — Augusto sorria e ainda fez uma pausa breve, ao tomar um gole largo do cappuccino, para então entrar nos detalhes sobre o paciente.
— Ele chegou até nós pela indicação de amigos, preocupados com uma inquietação que o tomou depois de uma viagem de férias ao Chile, como se estivesse sendo vigiado, ou até mesmo caçado. Não era dado a superstições, racional como um bom analista de TI. Começou frequentando as sessões de terapia duas vezes na semana, mas se decidiu pela internação integral quando já não se sentia seguro nem mesmo dentro do próprio apartamento. De algum tempo para cá vem ficando mais quieto, e não se junta aos outros pacientes nas atividades. Levamos alguns materiais de pintura até ele, e desde então ele produz as mandalas que você viu. Recentemente ele também passou a pintar abstratos, que se assemelham a caldeirões em fervura, rios vermelhos e igrejas, e não se abre quanto aos significados das imagens. Foi então que pensei na melhor pessoa para nos ajudar com esse quebra-cabeças, com o perdão do trocadilho infame.
— Eu não seria nada se não fosse o mestre suíço e a nossa mestra alagoense, Bryan. Foram neles que encontrei alento para minha falta de sonhos, e são os pacientes que gentilmente trazem o plano onírico até mim. — Ela se emocionava, revelando uma franca paixão pela psicanálise.
—Vamos Elise, vou te apresentar o nosso Gabriel. Vou ficar pouco tempo com vocês, para que, talvez, você consiga um vínculo de confiança com ele.
Eles deixaram a biblioteca para seguir por mais corredores claros, quando adentraram uma ala larga e comprida, de muitas portas que se abriam aos quartos da “internação integral”. Bryan parou em frente a última, abrindo-a depois de aproximar seu crachá a um sensor fixado na parede ao lado.
Gabriel estava debruçado sobre mais uma de suas mandalas, virando-se para encontrar o “doutor” e aquela moça de curtos cabelos escuros que contrastavam com o rosto de linhas finas e pele oliva.
— Bom dia, Gabriel. Como se sente hoje? — Ele levantou-se rapidamente para cumprimentá-los. Era um rapaz esbelto de grossas sobrancelhas e olhos castanhos levemente puxados, foco central no rosto anguloso de pele pálida, normal dos que passam a maior parte de seu dia atrás de telas de computador. Os cabelos escuros e ondulados desciam despenteados para bem perto dos olhos, mas, ainda assim, era possível enxergar uns trinta anos por trás daquela displicência.
— Me sinto bem, doutor. — O médico sabia que ele não iria além disso, e não insistiu em extrair dele qualquer coisa a mais.
— Muito bom! Essa é Elise, uma amiga de longa data, que quer conhecê-lo. Ela pode tomar um pouco do seu tempo? — Ele respondia apenas com um sinal positivo, e então o doutor os deixou para que a análise começasse.
— Essas são suas pinturas, Gabriel? Posso vê-las? — Ela apontava a uma pasta de capa dura repleta de folhas soltas, enrugadas pela umidade da aquarela, agora já secas. Mesmo não sendo inéditas aos seus olhos, ela buscava o vínculo com o rapaz demonstrando a mesma admiração antes frente às imagens digitalizadas.
— São fantásticas! E essas aqui, parecem ser mais novas… como essa que você está terminando. Quanta inspiração, queria ter um pouquinho para mim. No que você se inspira? — Ela continuou a folhear as pinturas em silêncio e sem encará-lo, à espera de uma resposta, bem sabendo que poderia sair de lá horas depois sem alguma. Ele precisava daqueles muitos minutos que se passaram, até quebrar o silêncio com a voz um tanto engasgada.
— São os sonhos… — Ele permanecia recluso sobre a pintura do dia enquanto ela tinha os olhos arregalados, pela pequena abertura que conseguira logo no primeiro encontro. Não buscou mais detalhes para não parecer outro predador no encalço por respostas, falando um pouco mais sobre aquele lugar, a vista para o vasto jardim, entre outras amenidades. A ausência de respostas a partir daquela única sinalizou que a sessão acabara e ela então se despediu do rapaz, ainda encurvado sobre a sua mais nova obra.
— E então? — Augusto a aguardava em sua sala, às voltas com uma pilha de prontuários de seus pacientes e demais papéis que requeriam sua assinatura para assuntos administrativos da clínica. Tão logo Elise surgiu à sua porta ele os deixou de lado, aguardando um relatório de sua ex-discípula e agora parceira.
— Realmente existe um bloqueio, ele se prende demais às mandalas… mas agora sabemos que as pinturas são de seus sonhos. E ainda, pelo tempo que ele repete os mesmos padrões, se tratam de sonhos recorrentes. Algo o marcou, e essa insistência em se mostrar quando ele está desarmado da consciência denota alguma falha, com ele mesmo ou com algum dever que evita cumprir. E digo mais, professor: essa “marca” foi gravada em seu subconsciente durante a viagem ao Chile. Ele mal conseguiria sair da cama com um bloqueio desses, quanto mais embarcar em uma viagem de férias.
— Temos que seguir no tempo dele — continuou Elise —, para que não me veja também como uma ameaça. Vai ser um longo caminho, até mesmo por que não virei todos os dias, para que não se sinta pressionado. Cheguei a falar que ainda nos vemos ao final dessa semana, para evitar que a ansiedade frente a um encontro possível, mas indefinido, o perturbe.
— Ou ainda evitar que uma visita repentina o amedronte. Perfeito, Elise. Acho que não preciso dizer o quanto sou grato pela sua ajuda nesse caso. Venha um pouco mais cedo para mais algumas xícaras de café na biblioteca, até mesmo para te informar algo de relevante que possa ocorrer nesse primeiro intervalo.
— Obrigada, professor, nos vemos em breve então. — Elise cumprimentou seu professor com um vigoroso aperto de mão, e deixou a clínica com os pensamentos envoltos em mandalas e rios vermelhos, bem como nos planos para as próximas “sessões”.
III
Quatro dias depois do primeiro encontro Elise passava pela mesma das inúmeras portas da ala da internação integral, depois de uma breve conversa com Augusto, que não lhe deu mais dados sobre Gabriel pois simplesmente não havia o que falar. O rapaz ainda se apegava às mesmas imagens em suas aquarelas sem partir para outros arquétipos, e se mantinha em silêncio na maior parte do tempo.
— Bom dia, Gabriel! — Ela esperava alguma receptividade por parte dele, junto à porta, para se aproximar. Ele evitava o contato visual, murmurando um “bom dia” enquanto meneava a cabeça em sinal positivo, sem se afastar da janela protegida por grades metálicas. Muito tímido, indicou a ela uma das cadeiras junto à pequena mesa redonda no centro do cômodo, como um convite, inclusive para a pasta recheada das suas atividades.
Elise percorreu as folhas demonstrando interesse, mas com os próximos passos em mente. Fez elogios sutis ao trabalho depois de fechada a pasta, evitando aparentar falsidade no contato e um possível afastamento do paciente. Ela não deixou que o silêncio os afastasse ainda mais, partindo para a busca de mais respostas.
— Soube pelo doutor Augusto que você esteve no Chile, sempre tive vontade de conhecer. Tem algum lugar interessante por lá para me indicar? — Gabriel se encolheu no canto da sala, procurando por alguma ameaça pelo quarto, com o olhar inquieto. Ela observava comportamento do rapaz sem transparecer qualquer reação, para não interferir no “material para a análise”, assim pensava. Esperou um bom tempo por alguma resposta em vão, até perceber que não avançaria. Ainda tentou retomar o contato falando das gravuras outra vez, mas não conseguiu outra resposta.
“São os sonhos…”
Ela deixou a clínica depois de relatar o episódio ao “velho amigo” e voltou outras tantas vezes, não conseguindo nenhum progresso a partir de então. O ânimo que lhe aquecia a paixão pela profissão, a partir daquele primeiro e-mail, esmorecia dia após dia. Ela sentia, frente ao seu professor – que tanto admirava seu trabalho – não só vergonha, mas também o fracasso a lhe corroer aquela confiança inicial. O cansaço tomava os músculos quando decidia passar a noite junto aos livros e ensinamentos de seus mestres, e, quando não tinha forças nem para isso, o sono era turbulento, mesmo com o auxílio das pequenas pílulas.
Estava prestes a desistir do caso, decidindo, a contragosto, comunicar seu mentor no dia seguinte pela manhã. O aborrecimento quanto à própria incompetência era tanto, a exaustão por tantas noites mal dormidas era tamanho, que jogou dois dos comprimidos na boca sem se importar com os efeitos que uma dose maior do fármaco pudesse causar. Não demorou para submergir em um sono profundo, ainda sem quaisquer sonhos, acordada em sobressalto por uma voz feminina por volta das três da manhã.
“Dai-me o que é meu para que eu vos possa ajudar.”
O coração palpitava no peito. Gotas de suor escorriam pelas têmporas. Não conseguiu adormecer novamente, depois disso. Nem seus últimos sonhos, anos atrás, a deixaram tão apreensiva do que aquelas palavras, em tom tão incisivo. Longe de algo sobrenatural, ela bem sabia que aquela ordem veio de dentro, como uma semente germinada em seu interior buscando alguma luz como vozes em sua mente quase desperta. Mesmo que fosse um reflexo do sonífero em excesso, o teor da mensagem – inexplicavelmente – comunicava-se com seu momento presente, fazendo daquela ordem uma boa razão para não desistir de Gabriel. Havia um último recurso para ele, e incerta de que fosse possível aplicá-lo, preferiu telefonar para a clínica e consultar Augusto para obter sua aprovação.
— Bom dia, Elise, está tudo bem com você? Já tem um tempo que você não vem à clínica. Iria te ligar hoje, algum problema com a sua medicação?
— Não, professor, está tudo bem. Passei os últimos dias estudando para tentar algum progresso com Gabriel, mais encontros para permanecer em silêncio podem prejudicá-lo ainda mais. Ele tem alguma restrição para sessões de hipnose?
— Acredito que não, estamos administrando apenas fitoterápicos em doses mínimas, não creio que vá interferir na sessão. Confesso que sou um pouco cético quanto a isso, mas confio em você. Venha em três dias, vamos ajustar a dosagem para que ele se sinta mais relaxado. Muito obrigado pela sua dedicação, Elise.
— Eu que agradeço sua paciência, Bryan. Nos vemos na próxima sexta-feira. Abraços. — Ela, ainda com a “ordem” em mente, murmurou:
— Vamos então buscar, seja o que for, para entregar a quem quer que seja.
IV
Aqueles três dias se esgotariam rapidamente, e a voz não se manifestou desde então nos pensamentos de Elise. Ela chegou logo no início do expediente da clínica, passando rapidamente pela sala de Augusto, que lhe desejou boa sorte com sinceridade. Encontrou um Gabriel calmo, contemplando a revoada de pássaros no jardim. Diferente dos outros dias ela não pegou a pasta para folhear as pinturas, mas se aproximou dele falando da liberdade dos pássaros. Propôs então um “exercício de respiração”, que o deixaria leve como aqueles pequenos alados no céu. Fechou a vidraça da janela para então pedir que se deitasse em sua cama, ao passo que ela se sentou em uma cadeira ao lado, mas não tão próximo de forma que ele se sentisse ameaçado.
— Feche os olhos, Gabriel. Respire fundo, e solte esse ar devagar. Volte a atenção apenas à sua respiração. Ao som que ela produz ecoando pelo seu corpo. — Ele seguia as instruções sem qualquer resistência, o que a deixou confiante para prosseguir.
— Agora imagine que a janela do quarto se abre para uma paisagem brilhante de dunas brancas. Respire. Não deixe que a paisagem se apague em sua mente. Você deve se sentir mais leve agora. — Ele não se movia na cama, totalmente entregue, e ela iniciou uma contagem regressiva.
Dez… Nove… Oito… Sete… Seis…
Você está passando para a paisagem. Ninguém pode te machucar.
Cinco…Quatro… Três…
Apenas abra os olhos, se você quiser voltar.
Dois… Um…
Depois de atestar a eficácia da imersão nos pensamentos do rapaz, não se demorou em assuntos irrelevantes, com o receio de que a sessão não se sustentasse por muito tempo.
— Gabriel, me conte como foram suas últimas férias. — O rapaz respirou fundo e, como se outra pessoa estivesse ali, começou a falar normalmente da viagem ao Chile.
— Fui sozinho. Estava cansado até para alguma companhia, por melhor que fosse. Passei os primeiros dias visitando os pontos turísticos que a agência de viagens recomendou. Fiz todas as refeições em um restaurante em frente ao hotel, e fui dormir cedo, todos os dias.
— E você esteve sozinho por todo o tempo? — Ela tomava notas rapidamente, de forma a não perder nenhum detalhe.
— Não. Nos últimos dois dias um senhor, que se apresentou como Nicolas e falava português – mas com sotaque francês –, pediu para dividir a mesa comigo no restaurante. Não recusei.
— E como ele era?
— Tinha o cabelo castanho, ondulado, desarrumado. Tinha algumas rugas na pele de tom bronzeado, mas era natural dele, não de sol. Os olhos claros eram próximos, tinha nariz pequeno, fino e de ponta um pouco caída. Vestia um sobretudo claro e meio surrado, além de usar um anel com uma lasca pequena de pedra vermelha, na mão esquerda.
— Vocês se falaram, o que conversaram?
— Eu apenas o cumprimentei, mas ele falava, e coisas que eu não compreendia. Deixei que falasse. No primeiro dia dizia que era nosso terceiro encontro, mas não o vi nos passeios. Dizia que se separou de Pierre para protegê-la há uns trezentos anos, pois havia olhos por toda parte e uma bruxa que usa um chapéu grande de rendas pretas perseguindo-o, nos sonhos inclusive, e que poderia ser encontrado em qualquer lugar. Dizia também que Pierre ia ser encontrada, pois o pé da cruz agora é muito movimentado, e que eu devia resgatá-la. No segundo dia, ele contou a mesma história, terminando a refeição depois de soltar o copo vazio da bebida na mesa. Antes de ir, ele pôs a mão no meu ombro, a pedrinha do anel parecia reluzir… e ainda disse: “Suba mais uma vez, sobrinho. Solve et coagula. ”. Não o vi mais.
— E como foi a viagem de volta?
— Rios vermelhos, sóis fechados, catedral.
Elise soube que dali em diante não conseguiria mais nenhuma informação. Ela o chamou de volta do estado de hipnose, e ao acordar, Gabriel retornou ao silêncio. Se despediu do rapaz – que estava tranquilo – e também de Augusto, depois de um breve relatório. Este a liberou sem mais perguntas, pois sabia que ela se fecharia com aquelas anotações até encontrar uma resposta. E muitos dias se passaram desde então, de muitas hipóteses sem uma conclusão mais convincente sobre o revelado durante a hipnose.
Elise passava os dias no escritório de sua casa, puxando diversos livros das prateleiras de sua pequena biblioteca para voltar à mesa coberta por um mar de papéis. O sono, agitado ainda, acentuava sua exaustão. E por mais que as dores a incomodassem, por algumas noites escolheu simplesmente não se deitar ao dispensar sua dose de sono encapsulada.
Gabriel não era vítima de agressão, não havia um trauma aparente que pudesse deixá-lo naquele estado, mas as últimas palavras do homem confuso que cruzou com ele não eram estranhas aos olhos de Elise. Ela as viu repetidamente pelos livros de psicanálise, dada a proximidade do estudo da psique com a Alquimia e suas operações. A expressão fazia menção às operações alquímicas de Solutio e Coagulatio, nas quais a primeira dissolve a personalidade consciente – levando a “matéria” a um estado de origem. A segunda traz propósito a essa tela em branco, coagulando consciente e inconsciente em uma unidade que lança o indivíduo à uma percepção elevada de si mesmo e de sua vida, ao relacionar “Solve” com outra operação ainda, a Sublimatio, no qual a matéria “dissolve-se” no ar para buscar a iluminação. As mandalas de Gabriel indicavam o desejo por essa unificação, pelos vários “caminhos” convergindo a um centro brilhante. De fato, ele parecia “dissolvido”, mas algo o impediu de se “coagular” novamente na realidade. Medos são muito capazes de se interpor na busca de propósito, mas medo de quê? — Elise se perguntava. — De um senhor visivelmente desequilibrado que passou rapidamente por ele? Ainda o chamou de “sobrinho”, talvez o tenha confundido com alguém. Não fazia sentido. — Ela dizia para si. — Podia ser apenas alguém solitário desesperado por uma conversa. Não fazia sentido mesmo. E assim, exausta e imersa em todas essas ideias, ela adormeceu profunda e espontaneamente sobre os papéis ali na mesa.
Nenhuma imagem se formava como sonho, como se estivesse sob efeito do sonífero. Talvez tenha perdido a capacidade de sonhar, depois de tanto tempo sufocando os arquétipos na profundeza de sua consciência. Mas, depois de quatro ou cinco horas quase inerte, a mesma voz feminina tornou a lhe falar aos brados, quase fazendo-a cair da cadeira ao acordar tão abruptamente.
“Protegei-me e eu vos protegerei.”
Como isso é possível? — Dizia Elise para si mesma. Aquelas mensagens tinham um quê de familiar, mas não sabia de onde. Lembrou do que o homem disse a Gabriel, de que precisava proteger alguém. Aquilo tudo dava voltas sem conclusão, como um Ouroboros aberto, e a atordoavam. Pensou em férias. Distanciar-se de tudo aquilo, nem que fosse mesmo ao Chile. Imagens das atrações turísticas pelo país na tela do computador a distraíam um pouco, quando viu algo ali que fez os pelos dos braços e nuca arrepiarem-se, como um sopro gelado percorrendo o corpo de cima a baixo.
Era um anúncio, desses que perturbam a navegação, de uma agência de viagens. “Visite o Jalapão”, junto a uma imagem de um pôr do sol, de raios esplandecentes que convergiam ao sol em seu centro, emoldurados pela abertura na rocha de um dos pontos mais visitados do lugar.
— Não pode ser…sincronicidades… a mandala… — Ela abriu o anúncio, que se desdobrou em dezenas de imagens, de “rios vermelhos, sóis fechados e catedral”. Os “rios” na verdade eram as estradas de terra vermelha que levavam ao lugar. Os caldeirões em fervura estavam espalhados por toda a área, piscinas naturais conhecidas como “fervedouros”. Uma das imensas formações rochosas tinha o nome de “Serra da Catedral”, pela semelhança com uma em seu recorte. As pinturas de Gabriel não eram sonhos, eram todas lembranças de um único lugar, embora no prontuário não houvesse relato de nenhuma outra viagem senão a do Chile.
A última das imagens da região a fez sentir um baque no peito, típico do momento de epifania quando todos os caminhos se juntam a um núcleo, claro e brilhante. O Morro da Cruz. Aos seus pés, muito antigamente, os povoados vizinhos deixavam seus mortos em redes de couro de boi. O homem com quem Gabriel dividiu uns poucos minutos do seu tempo disse ter se separado de Pierre para protegê-la, e que seria encontrada ao “pé da cruz”. Protegei-me e eu vos protegerei. Estaria Pierre morta aos pés do Morro da Cruz? — Elise perguntava a si — Protegei-me e eu vos protegerei. Mas “Pierre” não é um nome masculino? Francês. Sotaque francês. Pierre… Pierre… Nicolas… — Dizia ela em voz alta.
Elise afastou a cadeira com violência para se atirar aos livros das prateleiras atrás de si. As mãos trêmulas percorriam os volumes sem se importar em colocá-los no lugar, até que a busca frenética se encerrou quando fixou os olhos em um ponto na página amarelada. Um silêncio se fez ali e ela podia ouvir o próprio coração, acelerado, ecoando seus batimentos por todo o corpo.
“Compreendei, Filhos da Sabedoria, declara a Pedra: Protegei-me e eu vos protegerei: Dai-me o que é meu para que eu vos possa ajudar.”
Aquelas eram as palavras de uma escritora francesa que dedicou sua vida para a Alquimia, já falecida há mais de um século. Assim como as pinturas de Gabriel não eram sonhos, Pierre não é uma pessoa, é uma pedra. A Pedra. E Nicolas, certamente — nesse ponto Elise duvidava de sua sanidade — seria aquele Nicolas, o alquimista perdido que conquistou a Lapis Philosophorum, cujo fragmento ainda carrega em sua mão esquerda, fechada em um anel. O segredo de seu feito? É sabido por todos que fora transmitido como testamento ao seu sobrinho.
— O terceiro encontro… por isso ele pediu para seu sobrinho “subir”, da profundeza de Gabriel. — Dizia para si mesma, com um sorriso fraco, lembrando-se de quando – segundo a Alquimia – a Anima Candida, a alma, se desprende da profundeza do ser para a alta consciência rasgando os véus, trazendo à tona o conhecimento de suas incontáveis passagens anteriores por este plano. Gabriel não conseguiu essa proeza, nem pelo toque de Flamel. Faltaram outras operações. No máximo acessou recordações difusas de sua outra vida, e dos passos do tio para esconder a Pedra como se fossem sonhos, para registrar em suas aquarelas como um lembrete do dever a cumprir.
Realmente, esses dois andaram se encontrando pela vida… um morrendo e renascendo, outro, caminhando pela eternidade… Estou louca? — Olhava as imagens do Jalapão sem cessar.
— Dane-se.
V
Dias depois, Elise sentava-se no chão, frente àquela mandala esculpida em pedra, para admirar o pôr do sol depois de uma extensa exploração pelas cidades do leste do Tocantins, que compõem a região do Jalapão. Sozinha, ela ria de si mesma. — O que vim fazer aqui, encontrar a Pedra Filosofal? — Ela ria mais, de nervoso talvez, até ser interrompida pelo telefone celular que – estranhamente – captou algum sinal para funcionar ali.
— Elise? Aqui é Augusto, tudo bem com você? Nossa, a ligação está ruim… serei breve. Sei que você deve ainda estar às voltas com a análise da sessão de hipnose com Gabriel, mas houve uma mudança nos padrões das mandalas… Ele agora desenha um grande olho no centro de todas as que faz. Não se comunica mais. Achei que seria melhor te falar para…
A ligação foi interrompida, seguida por um chiado alto que era audível mesmo ao se afastar o aparelho. Assim como a luz do sol poente no rosto de Elise. Uma figura feminina estava à sua frente, de idade um pouco avançada, vestes em preto e um grande chapéu de rendas na mesma cor que lhe encobriam o rosto. Se lembrou das palavras de Nicolas a seu “sobrinho”, sobre olhos e uma bruxa – aquela mesma bruxa que a fez abdicar de sonhar. Os sonhos que a aterrorizaram na infância com aquela mesma figura, por tanto tempo silenciados pelas pequenas pílulas, vieram à tona paralisando-a.
— Obrigada por me trazer aqui, criança. Mesmo que a energia que ecoa por esse lugar nos atrapalhe um pouco, vai ser mais fácil encontrar a Lapis. Bem que eu disse àquele morto-vivo que um dia a encontraríamos, mas ele mal me ouve, repetindo como um papagaio: “Yomo, faça a troca!”, “Yomo, estou morrendo…” — a “senhora” nesse momento fazia caretas, retornando ao semblante sóbrio rapidamente para continuar o discurso.
— Buscar os pilares da Opus… ele já devia estar satisfeito com o que fizemos com o elemento de fogo da prima materia, nada vai trazer as memórias daquele homem de volta… o elemento de água então, minha nossa! Que menina mais patética essa “Theodora”… vão precisar de um milagre muito bom para que a Opus frutifique. Me admira que alguém como ele, que já atravessou eras caminhando neste mundo miserável consumindo uma vida atrás da outra, ter o raciocínio tão limitado, morto como um próprio morto-vivo. Tornar um corpo imortal para lhe fazer uma última troca usando a Pedra é muito mais sensato, e vou – finalmente – me libertar desse fardo. Já me basta ter de ser os “olhos” daquelas almas condenadas que ele usa para se safar do Julgamento.
Ainda no chão, mas já entregue, Elise tinha os cabelos ajeitados para trás das orelhas pelas mãos enrugadas e de longas unhas escuras de Yomotsu, que sorria ao observar o rosto da moça, de perto.
— Só não esperava ser justo você, minha jovem, a desvendar o mapa na mente daquele rapaz… achei que este, de todos os nossos encontros em seus sonhos, há tantos anos, fosse mais uma das milhares de predições que capto nesse plano mas se perdem por aí. Mesmo uma garotinha naquela época, gostava de você… personalidade forte… fizeram um bom trabalho bloqueando seu ingresso no plano onírico, mas, o seu último sono sem as drogas me abriu uma pequena brecha e pude espiar mais uma vez… e veja o que encontrei! Obrigada, criança.
Elise tinha o olhar vidrado e perdido, pode se dizer que já não ouvia nada o que a mulher estava a dizer. Levantou-se como se estivesse manipulada por fios invisíveis, pondo-se à frente daquela ameaça como se estivesse hipnotizada.
— Venha comigo. — Continuou a “bruxa”, medindo a moça dos pés à cabeça. — Também preciso de uma nova morada. Peles vazias de histórias não me interessam, mas a sua… ah, sim… ela carrega muitos sonhos…
VI
Elise então desapareceu naquelas matas, e Gabriel se fechou totalmente depois que os Olhares o encontraram. Esplêndido como eterno é o retorno, como nada lhe escapa. Séculos atrás o antecessor de Gabriel coagulou o sobrinho de Flamel em sua consciência, mas, também “fechou” a própria vida antes que Yomotsu lhe tomasse “o mapa” para a Pedra. Ainda assim, é pena que não tenha evitado que o horror da mera aproximação dos Olhares lhe marcasse a alma, lamentavelmente todos os seus sucessores – como Gabriel – irão compartilhar dessa aflição, se conseguirem se unir aos seus ancestrais ainda em vida. É triste, mas tudo que podemos fazer é garantir um bom recanto à essas almas quando estiverem de volta ao Éter. Não podemos mais intervir no plano Terrestre. Resta apenas a Opus Alchymicum agora.
“Solve et coagula”, queridos Filhos da Sabedoria…

A Câmara Brasileira do Livro certifica que a presente obra intelectual, encontra-se registrada nos termos e normas legais da Lei nº 9.610/1998 dos Direitos Autorais do Brasil. Conforme determinação legal, a obra aqui registrada não pode ser plagiada, utilizada, reproduzida ou divulgada sem a autorização de seu(s) autor(es).
Data do Registro: 31/03/2025 03:15:49
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IMAGEM: Alana Lopps, editado por Johanna D. Ars (2025). Confira o original em: @alana_lopps
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